terça-feira, 29 de julho de 2014

A REVOLTA DE ANTUNES



(1) Serra da Mantiqueira (veja crédito da imagem ao final do conto)
Para alguns ele era Antonho Antunes. Para outros, apenas Antunes. O fato é que quando ele chegou naquela casa, foi a maior briga pelo nome. Cogitaram tudo, indo do clássico ao absurdo. Chegaram a matutar o nome de Sapé Queimado para o coitado.  Até de Missanga ele foi chamado. Seu Givanildo queria que ele fosse Antunes, enquanto a esposa batia o pé e contrariava. Será Antonho. Acabou ficando Antonho Antunes.

Confesso que tenho mais apreço por Antunes, então assim chamarei esse pobre nessa curta história.

Antunes não teve descanso desde que nasceu. Ele não era daquele lugar. Fora achado num campo por seu Givanildo, que sem o menor respeito (coisa que nunca teve) tratou de leva-lo embora. Cresceu rápido, mas completamente raquítico, pois a alimentação era mínima e totalmente inadequada. Assim que pode, já trabalhava duro, e apanhava muito quando as coisas não iam bem para os escambos que seu Givanildo praticava.

Antunes conheceu soiteira. O couro vivia vergado pelas lambadas ardidas que tomava. Mas não reclamava. Apenas trabalhava de cabeça baixa e com o estômago roncando. Dormia, na maioria das vezes, ao relento. Preferia assim, pois detestava ficar entre quatro paredes. Gostava do ar mais fresco da noitinha, de ver a luz da lua ou de sentir a chuva.

Das tantas e tantas noites que varou em claro, tantas também foram as vezes em que o olhar se perdeu pelas montanhas vizinhas. Lá sim deveria ter algum cantinho para viver em liberdade. O mundo parecia ser tão diferente naquele lugar tão ao alcance dos olhos, mas tão distante de um corpo aprisionado. Corpo sim, alma jamais.

Certa feita, depois de uma chuva torrencial, Antunes voltava do roçado e tropeçou, rolando por uma ribanceira. Seu Givanildo desceu até ele e, de posse de um cajado de madeira, bateu tanto no pobre que sua cabeça abriu, quase arrancando uma orelha. Antunes não esboçou a mínima reação. Apenas ficou deitado até que aquele homem cansasse de bater. Fingiu-se de morto.

O tempo passou. Antunes cresceu bastante, mas continuava um saco de ossos. Jamais teve esperanças de conseguir se libertar da opressão daquele homem mesquinho e desumano que o levará ainda pequeno, mas também jamais deixou de sonhar com as montanhas. Noite após noite, olhava para lá e se deixava levar pelo ar frio que tanto fazia bem a ele. Até que o sol quente da manhã lembrava que ele tinha um roçado inteiro para cuidar e, claro, algumas chibatadas para levar.

Se alguém por aquelas bandas soubesse contar, certamente teria perdido as contas de quantas vezes Antunes foi surrado até ficar entrevado no chão seco. Antunes aprendeu apanhando. Fingia um desmaio, e seu Givanildo já comentava: “Tem que trabalhar nu circo, seu imprestáver. Parece inté que tá morto. Faiz inguarzinho.”. Depois, ele levantava meio capengando e tomava o rumo de casa.

Teve uma vez em que Antunes cansou de apanhar. Revoltou-se. Atacou seu Givanildo como pode. Cabeçadas, dentadas e chutes não faltaram. Seu Givanildo, assustado, levantou a soiteira, mas não adiantou. Antunes estava carregado de raiva. Forçou-o a caminhar para trás até que, inesperadamente, uma urutú cruzeiro deu um bote certeiro. Seu Givanildo estremeceu. Matou a cobra a pauladas e partiu ensandecido para cima de Antunes, mas o máximo que conseguiu foi agarrar-se a ele.

Com algum custo, os dois chegaram até a casa de seu Givanildo. Chamaram o médico da região, mas não teve jeito. O homem morreu dois dias depois. Mas não sem antes deixar uma ordem para o filho mais velho: “Mate esse desgramado do Antunes.”.

Gaité, o filho de seu Givanildo, não teve coragem de cumprir aquela ordem. Mas nem por isso agiu com algum caráter. Negociou Antunes para um dos produtores de carvão da área, daqueles que vivem explorando trabalho escravo. E Antunes logo percebeu que tudo continuaria igual ao que sempre fora, ou até pior. Então, de que adiantara ele ter se rebelado?

Mas algo inesperado aconteceu. Já no primeiro dia de lida, perto de um arroio, o carvoeiro ficou descontente com o serviço de Antunes. Desta vez a surra foi com uma correia.

Antunes estava enfraquecido, pois não se alimentava já fazia vários dias. Escorregou e caiu, ficando com a cabeça completamente dentro da água, o que fez com que o carvoeiro parasse e observasse.

―Matei o traste. Mas num prestava pra muita coisa mesmo. ―comentou o carvoeiro. ­―E se não morreu, num guenta muito. Que fique aí, pra alimentar argum animar ou os urubú, que devem estar famintos.

O carvoeiro virou as costas e foi-se embora. Quando chegou ao local onde ficavam os fornos, ordenou que um de seus empregados fosse até o local e recolhesse a lenha que Antunes puxava antes do ocorrido. O empregado foi, mas voltou com uma notícia não muito boa para o patrão.

―Sinhô! Num achei o tar lá no arroio. Será que o peste inviveu di novo e deu no pinote?

Cavalo idoso - by Google
E assim, Antunes conseguiu sua tão sonhada liberdade, fingindo algo que as surras ensinaram. Para o carvoeiro, ele tinha morrido, e se o tal ficasse por lá mais alguns minutos, isso realmente teria acontecido. Mas bastou que ele virasse as costas para que Antunes levantasse rapidamente e ganhasse o rumo das montanhas.

Hoje, Antunes vive solto pelos costados verdes do Morro da Imbuia (²). Não é raro passar por lá e vê-lo galopando, já bem mais gordo. Galopando? Pois é. Antonho Antunes não é um homem, mas sim um cavalo. Mas isso não diminui o sofrimento das surras e do trabalho forçado, ou dos maus tratos, diminui?






Marcio Rutes




não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.



Notas
(¹): A imagem da Serra da Mantiqueira mostrada logo no começo deste conto foi retirada da web, mais precisamente do site do Instituto Pinho Bravo.

Visite o site do Instituto

Link da imagem: 

(²): Morro da Imbuia é um nome fictício, e não faz parte do complexo da Serra da Mantiqueira.
O conto não é ambientado na Serra da Mantiqueira. A utilização da imagem deu-se, unicamente, pela extrema beleza que a Serra da Mantiqueira revela, casando perfeitamente com a liberdade tão sonhada pelo personagem principal.

terça-feira, 15 de julho de 2014

ANTÍDOTO


imagem - Marcio Rutes


O futuro talvez seja um veneno que age no presente, mas plantado no passado. Ele corrói as entranhas dos sonhos, fazendo com que se queira mudar, evoluir, prosperar.

E esse veneno chamado futuro calibra cada faísca dos sonhos na busca da prosperidade física e mental. Aptidões financeiras mais favoráveis sobrepujam, muitas vezes, as questões de corpo e espírito. Mas, é para o lado sentimental que mais buscamos esse veneno chamado futuro.

Antídoto? Tem sim. Viver uma vida calcada na realidade, sem almejar o amanhã, porém realizando o hoje. Troca-se o risco pelo “algo seguro”. Troca-se o sonho pelo “palpável”. Troca-se, muitas vezes, o amor de uma vida pelo medo de sucumbir ao pesadelo da solidão. Ninguém a quer, a solidão. E por isso, muitos deixam de sonhar. Acabam por não existir em seu próprio futuro. E ele, eu sei, só existe por uma fração de segundo, para tornar-se presente e passado rapidamente.

Sempre achei que a música fosse alguma espécie de antídoto. Mas não uma música qualquer. Teria que ser aquela que tem o poder de devastar e, ao mesmo tempo, trazer sementes e replantar toda uma cadeia existencial.

É! Eu precisava viver esta música.

Nem estava tão frio. O mundo era rápido em sua passagem, e mesmo sem poder enxergar muito, ainda resgatava alguns faróis vindos em sentido contrário. Nada de estrelas ou planetas naquele breu em que estava o céu, e como de costume, o sono desaparecia no transcorrer da viagem. A solidão naquele banco apertado só não era maior do que a própria vontade de estar ali, a caminho de um novo destino. A solidão era tão parecida com a escuridão lá de fora, que eu sequer me permitia olhar por dentro.

Uma ponta de ansiedade já me tomava, me forçando a um jogo frenético de adivinhações. Como seria o brilho dos olhos dela? Suas mãos teriam a mesma maciez de sua voz encabulada? A pele, os braços, pernas, cabelo e, claro, seus dedos rápidos e prontos para dar “petelecos”, seriam como eu imaginava? Em poucas horas eu saberia. O engraçado é que talvez um ano se passasse num instante, mas aqueles malditos minutos do meu relógio se arrastavam numa eternidade sem fim.

Mais faróis, e num deles eu imaginei um beijo. Como eu queria esse beijo. Como eu precisava de um simples afago brotado daquela boca que tanto beijei em sonhos. Pois é. Eu queria o antídoto, mas eu sonhava. Quem sabe eu quisesse, verdadeiramente, o veneno.

Que ironia. Diante de mim, abrindo-se num clarão em meio à madrugada, estava a cidade que não dorme. Eu, que tanto detesto multidões se apertando e gente apressada, estava a ponto de voltar para o maior centro de agitação que conhecia. E a cidade me recebeu assim, me deixando tonto com seu vai-e-vem de pessoas e veículos já na boca da manhã.

Para não desapegar do hábito, me perdi dentro de mim mesmo ao me reparar com os pés num chão não tão desconhecido. E foi olhando rosto por rosto que desabei o corpo numa poltrona qualquer, pronto para esperar mais algumas horas sem fim.

O castigo da espera é sempre o cartão de visitas que é dado a minha pouca paciência. E assim que aqueles poucos raios de sol surgiram, mais parecendo com fios de ovos do que com algo luminescente, parti para explorar o que eu já conhecia de outras tantas vezes que estive ali. Não queria parecer alguém estranho, mas havia esquecido que para isso, eu mesmo deveria me reconhecer. No entanto, isso não estava acontecendo. Ao olhar numa vitrine qualquer, o que vi era um menino perdido, ansioso e temeroso. O pior de tudo é que não existia uma música para se escutar ali por aquelas paragens. Vozes se misturavam e maculavam minha pouca sanidade. Um desvairado num inferno de loucos apressados. Assim eu me sentia.

Tudo passava tão lentamente, até que um mar de gente apressada por muito pouco não me engole. Teria engolido sim, mas um aperto em meu peito fez com que todos desaparecessem. Todos, com a exceção de uma única pessoa e seu dedo curioso e delator.

―É você?

Foi estranho, pois não a ouvi perguntar tal coisa. Eu li seus lábios, os mesmos que mais tarde estariam ensinando aos meus a forma mais rápida de se aplacar uma sede sem fim.

O que sei é que ela era mágica, ou então minha vontade e ansiedade eram tão grandes, que ela parecia passar pelo meio dos transeuntes. Acho que eu a fazia transfigurar a cada vez que alguém se aproximava dela. É! Acho que foi isso, pois quando me dei conta, eu estava enlaçado por aqueles braços que nem eram grandes, mas que me apertavam de um jeito único, transformando-se em algo só nosso.

Cereja - image by Google
Não, nós não nos abraçamos. Fazemos questão é de nos enroscar.

Fomos abaixo do chão e voltamos ao térreo de nossa realidade numa velocidade sem igual. Percorremos e corremos entre odores e aromas, acepipes e arte tanto abstrata quanto (in)concreta. E eu, numa atitude nada cavalheira, mas totalmente necessária para meus devaneios futuros, passei meus dedos em sua calça, na altura da coxa. Mas calma. A causa até que me absolve, pois estava limpando algumas casquinhas de um tal “pastel de palmito” (famoso e delicioso) que ela comia. Bendito pastel. Passou a ser um elemento de adoração para mim. E quanto mais casquinhas ele tiver, melhor.

E assim, me vi dentro de um furacão. Era como se um rastelo passasse em minha essência, arrancando fundo cada raiz. A ansiedade? Não, ela não havia cessado. Pelo contrário, estava pior e esperando por um mínimo sinal.

Ele veio. O sinal que eu tanto queria veio em forma de um olhar de aprovação.

Tudo silenciou. Aquietou-se em meio ao barulho urbano que vinha da rua. E assim, do nada, uma música verteu dos lábios dela, cantada diretamente em meus lábios.

Percebi que o passado, aquele dos castigos e dos devaneios, estava desaparecendo. Restava dele apenas o frasco do veneno que faz com que evoquemos os sonhos futuros. E nos lábios dela,  a suave mordida que me libertou de um cárcere íntimo.

Se eu quisesse, teria ali o antídoto para uma vida desregrada e vazia, um tanto solitária, mas joguei-o ao chão. O frasco partiu, e o líquido perdeu-se. Não haveria remédio para tudo o que eu pensei em curar no meu passado. Porém, ela me mostrou que nada precisaria ser curado. Afinal, era passado. O que era preciso, sim, era de um novo encantamento, ou um doce veneno, que me contagiasse e fizesse com que meu corpo e alma entrassem em uma nova febre. Uma febre que me tomasse e me queimasse, ardendo em suaves convulsões vindas de melodias desconhecidas.

A pele suada trazia parte do encantamento. Aromas e gostos, que só ela tem, temperaram uma poção para me conjurar ainda mais sede, enquanto suas pernas me prenderam num abraço que os próprios braços não puderam dar, pois eles estavam ocupados me aprisionando num peito macio e de onde eu tanto sonhei em beijar.

Veneno? Não sei. O que sei é que nem sempre um antídoto é o que queremos ou precisamos para curar a solidão. Por vezes, é melhor esvaziar aquilo que se tem, por completo, e deixar o vento carregar nosso destino meio a esmo, sem direção. E se damos a sorte de encontrar quem cante aquela música, essa mesma tão silenciosa em notas, mas rica em gotas do veneno dos sonhos, então devemos compor juntos a canção.

Saí dali completamente zonzo pela dose de veneno que me contaminou. Sonhos rápidos e compulsivos me deram uma quantidade monstruosa de futuro. Não. Algo além. Um sobrepasso num lapso do tempo, num lápis que risca tão rápido que sequer a luz consegue acompanhar, vertiginoso que é. E a morada dos dias se abriu, mostrando um universo radiante, como um deus que te diz bom dia e te beija a face. É dormir para esperar o dia raiar, e assim, viver o futuro do ontem, mas sem descuidar do amanhã.

Um mês. Por um longo mês, ela me fez voltar ao passado. Como? Falei tanto em futuro, mas agora afirmo que ela me fez voltar ao passado? Sim, ela fez isso. Fez com que eu me comportasse tal qual criança afoita e desesperada, como nos natais com seus presentes empacotados e guardados debaixo da árvore. Até que veio o SiM que eu tanto esperava. Exatamente no dia 15 de julho de 2013.

Ela esteve em meu passado. Não apenas neste atual, se é que existe isso, mas acredito até que em outras vidas interdimensionais (quem sabe, não é?).
Porém, é aqui que a conheci. E levei um bom tempo para conquistá-la, trazendo-a para meu presente, e fazendo dela o meu mais saboroso veneno. Aquele mesmo que contamina cada sonhador. Ela é meu sonho futuro. É minha vida.

Samara Bassi é meu motivo para amar viver, para amar meus sonhos, e para me fazer ir SeMpre em frente. SeMpre. Unicamente porque eu amo desmedidamente essa mulher. E se existe um antídoto para esse amor que sinto, seja por ela ou por meus sonhos, eu dispenso, porque ela é meu sonho de futuro, presente e passado.

Quer saber o que é engraçado nisso tudo? Depois de tanto tempo, aprendi que somos senhores de nossa vontade. E minha vontade agora é dizer...


"FELIZ NOSSO DIA DOS NAMORADOS, MINHA SAM". 


Marcio Rutes


imagem - Marcio Rutes

não copie sem autorização, mesmo dando os devidos créditos.
SEJA EDUCADO (A). SOLICITE AUTORIZAÇÃO.