sexta-feira, 27 de junho de 2014

O BUTIÁ DE ALELUIA


Butiá - palmeira e fruto - by Google
Aquela caminhonete era enorme. Grande mesmo, totalmente fora dos padrões daquela cidadezinha de porte médio lá pelos lados do interior. Parada no estacionamento do banco, ocupava o espaço de dois carros grandes.

Seu Oscar, o morador mais ilustre de uma cidade próxima, desceu fazendo pose. As botas, de couro de crocodilo, brilhavam em parceria com a grande fivela do cinto que segurava sua lustrosa calça jeans, e que diga-se, era mantida sempre muito bem passada a ferro e, claro, com um aparente vinco nas pernas. A camisa era quem sofria. Branca e em estilo social, quase se arrebentava na altura da saliente barriga. Na cabeça, um chapéu de boiadeiro, daqueles de rodeio, e decorado com alguns butiás, fruto de uma palmeira típica da região. Seu Oscar ostentava sempre aqueles frutinhos, pois dizia a quem quisesse ouvir que sua fortuna era devida a eles.

Logo depois de Seu Oscar, apareceu dona Aleluia, sua esposa. Ela fazia o estilo esguio, alta, e com os cabelos desgrenhados. O vestido longo, e florido de lilás e azul, marcava bem as ancas largas, deixando para as mãos um par de luvas importadas, e que ela gostava sempre de gabar a procedência: Paraguai. No rosto, a maquiagem não era pouca, e em momento algum pretendeu a discrição.

E para completar a família, os 3 filhos: Cajuino, Equinócio e Perestróica.

Já diante do gerente especial que cuidava de suas contas, seu Oscar ordenou:

―Fio, invista naquilo que melhor me render. To quereno fazer uma viagem pra Poconé, e adespois esticar pra minha fazenda. Não quero percupação com meu dinhero.

―Poconé? ―perguntou o gerente, tentando ser simpático ao extremo com aquele que era um cliente tão rico.

―Oxe! Tá achano pouco? Intão jogue mais uns 100 mião junto. Si o sinhor acha pouco, é purque sabe do que tá falano. O sinhor é a otoridade aqui.

O gerente sorriu, e meio sem jeito, explicou que fazia referência a cidade para onde seu Oscar viajaria. Mas, obviamente, aproveitou e jogou mais aquela soma para o investimento. E como queria agradar ainda mais ao cliente, resolveu servir um café e esticar a conversa.

―Mas, me conte, seu Oscar. Como o senhor fez para amealhar toda essa fortuna? Existe alguma fórmula que o senhor possa ensinar?

―Seu moço, num ameiaiei nada não! Eu trabaiei é muito. Eu e Aleluia!

―Aleluia, seu Oscar. Aleluia!

―Que Aleluia? Purquê falou ansim?

―Ué? Eu falei aleluia no sentido de “graças a Deus”!

―É! Foi cum fé e trabaio. Eu e minha Aleluia!

―Aleluia!

―Di novo? Purquê o sinhor só repete o nome da minha mulher? Pur acaso acha que ela trabaio mais du que eu? Aliás, Cajuino só largava o enxadão quando chegava Equinócio. Era duro.

―O que? Não entendi nada! O senhor plantava cajú nos equinócios de outono e primavera? Mas cajú nem dá por essas bandas.

―Tá dando uma de abestado cum eu, é? Que cajú? Cajuino é fio meu, o mais véio. Adespois veio Equinócio, junto com a Perestróica.

―Ah! Tá! Entendi. Me desculpe. Mas então, o senhor já estava casado quando veio a abertura soviética?

―Quem é essa muié que o sinhor falou? Essa tar Soviética? E purque ela veio aberta? Tinha ispinhéla caída?

―Hã? Como assim? Não, não. É que foi na abertura soviética que veio a perestróika.

―Vo ti dá um amansa corno nos beiço já já se o sinhor não parar de ofender minha famia. Perestróica é minha fia, e veio de Aleluia. A partera num era essa tar de Soviética, e nem muito menos tinha ispinhéla caída. Me respeite, tarzinho.

Eles se olharam fixamente por alguns instantes, e seu Oscar reparou uma gota de suor escorrendo pela face do gerente. O rapaz parecia perdido, e quem sabe nem tivesse sido a intenção dele ofender assim. Então, seu Oscar continuou no relato.

―Bão. O começo foi dificir. Eu era bóia fria, e conheci a muié da minha vida. Aleluia.

―Aleluia! ... ops... perdão, seu Oscar. É a força do hábito.

­―...tá. ...sei. Mas como eu falava, conheci Aleluia. Ela morava numa área de terra muito ruim, coberta com esse tar de butiá, uma parmera que eu nunca tinha visto lá donde eu vim. No começo, quando casamo, eu cuidava da terra e era servente de pedrero, enquanto Aleluia colhia e vendia butiá. Logo depois, veio uma estia grande, e por um acaso de Deus, nossa porpiedade foi a única que manteve um pouco de água, mas como nóis num plantava muita coisa além daquelas parmera, e nem criava gado, passemo a usar a água pra moiar só elas. Ficou uma belezura, e a gente viu que só nóis fiquemo com essas parmera na região. Aleluia.

Seu Oscar calou, e como percebeu que o gerente não iria falar nada, retomou a palavra com certa irritação.

―Tá mangando di eu, é? Falei aleluia, em gardecimento, i o sinhor num vai arresponder não, seu abestado?

―Aleluia, aleluia! ―o gerente respondeu, sem entender nada.

―Mior ansim! Mas, enfim, o tempo passou, e nossos butiá começaro a fazer o maior sucesso. Era os butiá de Aleluia, como o pessoar falava. Inventemo suco, doce, artezanato cas foia e inté licor. Era o Licor de Butiá Aleluia.

―Mas que maravilha! Parece muito bom, seu Oscar.

―É muito mior do que o sinhor pode pensar! Num tem ser vivente lá no vale das Parmera, donde moramos, que já num tenha dado umas beiçada no butiá da minha mulher. Só o padre é que é um chato. Nunca bebeu o licor que sai do butiá dela.

―Como assim? Não entendi!

by Google
―É que o padre é meio chato. Ele acha o licor do butiá da minha mulher um poco grosso. Diz ele que tem cheiro forte. Mas o padre é danado. Não posso virar as costas que lá tá o padre cá vara na mão, pronto pra comer o butiá da minha mulher.

―Como é? Não to entendendo!

―Ele mete a vara no cacho. Pior é que ele judia do butiá dela com isso. Mas o fato é que si temos o que temos hoje, devemos ao butiá da Aleluia. E que butiá gostoso. O senhor quer provar?

―Provar o que? Como assim?

Seu Oscar, repentinamente, levantou-se e procurou por sua esposa. Quando a enxergou, soltou um assobio, que chamou a atenção de todos, e começou a falar alto, bradando pela esposa.

―Aleluia! Aleluia!

Sem entender nada, os outros clientes, em coro, responderam:

―Aleluia! Aleluia!

Seu Oscar olhou todo sorridente para o gerente do banco, e falou baixinho:

―Mas, óie, seu tarzinho. Viu como todos bradaram o nome de minha mulher? Todos eles já devem ter comido o butiá de Aleluia! Que orguio qui eu tenho!

Ainda sorridente, virou novamente para onde estava a esposa, e continuou falando alto.

―Aleluia, mande Cajuíno ir até Equinócio, e traga a cesta. Hoje, todos os que estão aqui vão comer teu butiá, mulher. E o melhor, de graça. Eu to feliz, e todo aquele que quiser comer o butiá de Aleluia, pode fazer fila aqui. E guarde um butiá bem graúdo, que é pro seu tarzinho aqui poder se lambuzar no teu butiá, mulher.

―Seu Oscar, por favor! O senhor está passando dos limites!

―Ara, tarzinho! Se o sinhor não é chegado num butiá, minha fia tem umas vaquinha de leite. Já provou o leite de Perestróica?

―Mas isso já é o cúmulo! Que pouca vergonha! ―o gerente gritou, indignado. ―Eu não quero comer o butiá da sua mulher. Não quero comer o butiá de ninguém aqui. Se eu quiser comer butiá, como o meu mesmo! E também não quero saber do leite da perestróica da sua filha.

O gerente gritava e se agitava, até que percebeu que todos olhavam para ele de uma forma esquisita. Foi quando o filho de seu Oscar apareceu diante dele com uma enorme cesta, cheinha dos frutos de que seu Oscar tanto falava.

―Ah! Então são esses os butiás de sua mulher?

―Mas é craro, soh! De qual butiá então o sinhor acho qui eu tava me arreferindo?

―Nenhum, seu Oscar. Nenhum. E ainda bem que o senhor não planta cajú, pois eu até imagino como seria complicado comer a castanha do Cajuíno. Que confusão. Acho que me perdi nessa bagunça toda de nomes. Devo confessar que eu cheguei até a sentir que algo meu ficou apontando para um equinócio de primavera, mas foi por pouco tempo.

―O que o sinhor tá arresmungando aí, seu tarzinho? Num to intendendo nadica!

Alho - by Google
―Bom, por sorte o seu nome não segue o padrão de complicação do restante de sua família.

O gerente, completamente corado, sentou-se. Mais calmo depois de alguns minutos, retirou alguns papéis da gaveta e começou a analisar, até que viu algo estranho.

―Seu Oscar! Me parece que houve um erro de digitação aqui nos documentos. Seu nome está incompleto. Está apenas como “Oscar A.”. Qual é seu nome completo, afinal, seu Oscar?

­―Ah, seu moço. Meu nome é uma belezura em homenagem ao melhor fruto da terra. É Oscar Alho. E falando nisso, dizem na minha terra que depois de dar umas dentadas no butiá da minha mulher, a melhor coisa que tem é sapecar um alho no forno. Dizem que o cheiro é uma delícia.

―Eu mereço! Eu mereço! ­―o gerente suplicou, desanimado.



Marcio Rutes




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quarta-feira, 18 de junho de 2014

RECICLANDO A PRÓPRIA EXISTÊNCIA

série EMPÍRICA MENTE


Átomo - image by Google
E enfim, tudo é matéria. Tudo é energia. E tudo se recicla num ciclo sem fim.

No entanto, não sou daqueles que afirma que “somos apenas poeira cósmica”. Não, nós não somos. Alguns otimizam a maneira de pensar e agir, de ser e sentir, e vão além daquilo a que foram destinados, enquanto outros sequer conseguem atingir uma mera condição de poeira.

E que a energia cósmica nos abençoe e proteja, pois dela sacio minha fome e para ela serei, futuramente, alimento.

Se estou, com isso, negando a existência de Deus? Sim e não.
Antes de qualquer coisa, preciso saber de qual deus estamos falando. Existem vários e para todos os gostos, pois hoje virou moda cada um ter o seu ou inventar um que vá na direção oposta do outro.

Ah! Você fala daquele ser onipresente e onipotente, divindade das divindades, que tudo vê e tudo castiga ou premia? Daquele que sempre existiu mas que jamais se apresentou formalmente? Daquele que por mais que se tente, jamais se consegue tocar? Bom, se é desse que estamos falando, sim, eu nego a existência.

Mas se estamos falando daquele que vive aqui, pertinho, brilhando no respingo de orvalho, e que mais tarde evaporará para compor novamente o ar que respiramos, ou daquele que está presente nos elementos químicos que fazem o sol queimar e, por consequência, brilhar e aquecer esse mundo todo, ou ainda daquele que brota da fotossíntese das plantas, desse eu não nego a existência.

Quem sabe eu tenha demorado demais para permitir que minha mente acalmasse com as perguntas e, simplesmente, aceitasse os sinais do universo. A energia que toca a pele de cada um é exatamente a mesma que move cada verme que consumirá um ser após sua morte para, com isso, reverter aquilo que se pensa “morto” em energia novamente. Enfim, tudo é reaproveitado, até a baforada de gás carbônico que expelimos após o ato da respiração. Somos reciclados para proporcionar energia a tantas outras formas existentes neste mundo.

infinito - image by Google
Se eu acredito em reencarnação? É claro que sim. Acabei de descrever justamente isso no parágrafo acima. Sempre que a natureza retoma sua propriedade sobre cada um de nós, ela tece seus protocolos e reenvia nossa energia para as matas, para os rios, para o solo. Literalmente, viramos esterco. E nem pense em torcer o nariz para tal coisa. Caso você não tenha percebido, seu próprio corpo já é “material reciclado”. Ou de onde você acha que veio toda a matéria que te compõe? Ela vem do alimento que você consome, da água que você bebe, do ar que você respira. E a maioria dessas coisas vem da terra, que foi adubada com folhas mortas, ou animais, que em decomposição, servem de alimento justamente para aquilo que vai te alimentar. Ou até que alimentaram sua mãe para, com essa energia, poder gerar seus óvulos.

“Do pó viemos, e para o pó retornaremos”. É. Posso até aceitar tal dito, mas prefiro pensar que um UM DIA FOMOS ENERGIA E, BREVEMENTE, VOLTAREMOS A SER.

E já que é assim, então que se preserve melhor aquilo que nos gerou, alimentou e que, num futuro próximo, nos reciclará para que possamos renascer, seja lá na forma que for. Quase uma “reencarnação”. Não concorda?




Marcio Rutes



Leia a primeira parte em

ENTRE CRENÇAS E CALACEIOS




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