domingo, 28 de julho de 2013

CASA NA ÁRVORE

Casa na árvore - by Google
Um dos meus sonhos desde criança, de sonhador inveterado que sou, sempre foi ter uma casa na árvore. Parecia simples para muitos, mas nunca consegui uma. Algumas crianças iam além, e desejavam castelos. Eu não. Para que um castelo?

Bastaria um casebre bem simples, só com uma porta mesmo e uma janela, e que eu pudesse dizer que era minha. A árvore também não precisava ser nenhuma em especial. Só queria uma de folhas bem verdes e de galhos que sustentassem a mim e meus sonhos.

Lá para minha casa na árvore eu levaria meus cacos de brinquedo, dos poucos que tive, e também meus gibis. Ah! Sim, claro. Levaria minha imaginação e a colocaria na única prateleira que teria por lá. Essa jamais me abandonou, e só eu sei o quanto ela foi e ainda é extremamente fértil.

Tantas foram as noites em que me vi descendo de um segundo andar qualquer, escorregando por lençóis amarrados e que faziam uma dessas cordas de filme, para sair correndo até meu refúgio na árvore. Lá eu olhava as estrelas, contava os planetas, fazia pedidos para as cadentes mais brilhantes, falava com os animais noturnos, e até me tornava um explorador ou observador em um posto de vigia numa muralha alta, cercada de montanhas. Mas sempre acordava em minha cama, e via que era somente mais um sonho.

Certo dia, numa dessas minhas andanças, parei próximo a um bosque e aproveitei para descansar um pouco. O sol da tarde fustigava, e como o vento estava agradável e o silêncio se fez companheiro, adormeci rapidamente. Não demorou muito e acordei com algumas vozes bem próximas ao meu ouvido. Pareciam crianças, mais precisamente meninas, e brincavam num alarde sem igual. Olhei para todos os lados e não vi nada, nenhuma viva alma naqueles arredores. Até que, sem me esperar, alguém me chamou.

­―Moço! O senhor poderia dar licença? É que o senhor está tapando nossa janela, e não estamos conseguindo pegar sol por aqui.

Me virei assustado, e o que vi me deixou, literalmente, de queixo caído. Atrás de mim, na árvore em que eu me encostara para descansar, existia um castelo esculpido, com aproximadamente um metro de altura. Mas ele não estava lá quando cheguei. De onde tinha vindo então?

―Hei, moço! O que foi? Parece assustado?

Naquele instante, a única explicação que me ocorreu era a de que tudo não passava de algum sonho. Então, entrei na dança.

―Não é isso, menina. É que meus sonhos sempre me pregam peças. E onde está você, afinal?

Aproximei os olhos do que parecia ser uma das janelas do pequeno castelo e consegui ver duas meninas, de aproximadamente 5 ou 6 anos cada uma. Elas estavam rodeadas de brinquedos, e suas vestes eram belas, como se fossem princesas.

Cumprimentei polidamente, apresentei-me e perguntei se eram fadas, e a resposta me deixou com a pulga atrás da orelha.

―Sou Dorinha, e está aqui é minha irmã, Clara. E não somos fadas não. Aliás, este aqui não é um sonho. Ah! Aquele ali no canto é meu cachorro, o Jujubão. Eu e o Jujubão já nascemos, mas ainda falta a Clarinha nascer. E olha, moço! Ela está louquinha pra participar das minhas aventuras, viu!

Congelei. Dorinha e Jujubão? Eu os conhecia, é claro que sim. Afinal, eu havia criado Dorinha em um dos meus contos. Tanto ela quanto seu cachorro, o Jujubão. Então, era óbvio que aquilo era apenas um sonho. No entanto meus sonhos estavam ficando um tanto complexos, principalmente quando meus personagens resolviam aparecer e, o que era pior, afirmar que eu não estava sonhando. Mas, continuei conversando.

O que sei é que passei um tempo enorme por ali. Falamos sobre tudo, brincamos, fizemos adivinhações, participei dos sonhos de Dorinha, mas meus olhos estavam presos mesmo era na outra criança, ou seja, em Clara. Que menina linda, com um jeito arteiro sem igual. E como me lembrava alguém. Os olhos eram de alguma pessoa que eu conhecia, tinha certeza disso. Fiquei fascinado, e penso que um laço paterno ficou estabelecido entre eu e aquela criança. Mas não lembrava de tê-la feito nascer em algum de meus contos ou fábulas. Então, por que Dorinha falou dela como sendo sua irmã? Seria alguma fábula que eu ainda iria escrever?

A tarde já cedia lugar para a noite quando, sem me dar conta, levantei e me despedi. Achei que as meninas, mesmo em sonho, precisavam se recolher. Quando me despedi, Dorinha me olhou, ternamente, e disse:

­―Não desista de sua casa na árvore. E lembre que por mais simples que ela seja, para você ela será seu castelo. Sua princesa está a caminho, tá bom? Mais uma coisa... a Clarinha ta doidinha pra brincar na sua casa na árvore. Ela sabe como me chamar.

Casa na árvore - by Google
Escutei aquilo e fui andando. Que sonho estranho.

Um pouco mais adiante, numa reta da estrada, parei num posto de gasolina. Talvez nem fosse preciso, pois afinal era um sonho, mas acho que até quando durmo sou um tanto metódico. Deixei o veículo abastecendo e fui tomar um café. Foi quando percebi que não era um sonho. O café estava quente demais, e a dor proporcionada pela queimadura em minha língua foi horrível.

Com quinze minutos, eu estava novamente naquele bosque. Nada de castelo esculpido em qualquer tronco, e muito menos sinal da árvore. No lugar em que ela deveria estar, encontrei apenas um tipo de pó brilhante, que parecia fazer um rastro para o alto. Mas logo desapareceu também. Quando olhei para cima, pensei ver alguns vultos de luz que entravam para dentro da noite. Forcei os ouvidos e escutei risos de criança, mas muito longe, quase sumindo no silêncio do bosque.

Naquela noite, no hotel, sonhei novamente com minha casa na árvore. Mas agora, não era uma casa tão simples. Não era um castelo, é claro, mas era vasta, e se estendia pelos grossos galhos. Lá dentro, Dorinha, Jujubão e Clara brincavam comigo, fazendo a maior algazarra. Um cheiro de pizza (sim, meus sonhos têm cheiro) tomou todo o lugar, e quando me virei para a porta, alguém chamava para o jantar. Era uma linda mulher. Meiga, com jeito de quem adora ganhar carinho e colo, e tinha os olhos exatamente iguais aos de Clara. Ela se aproximou e me pegou pela mão, me abraçando.

Um sonho? Era sim. Mas não duvido de mais nada.
Se eu conheço essa linda mulher na vida real? É claro. Conheço muito. E posso dizer que estamos, eu e ela, sonhando nossa mais bela fábula.
Mas isso é para outro conto.



Marcio Rutes


quinta-feira, 18 de julho de 2013

LANTERNA CHINESA

lanternas chinesas - by Google
Àquela hora tudo estava calmo. Até o vermelho das lanternas chinesas pareciam descansar. E nenhum barulho se atrevia a ferir o silêncio da madrugada. Não existia viva alma em lugar algum.

Tudo tão diferente da confusão de pessoas de horas antes. Aquele disparate que mais parecia uma praça de guerra do que, propriamente, uma festa. Mas fora lá que ele a viu. E a notou bela, sorridente, um verdadeiro sol em um mar de estrelas menores. As mãos delicadas carregavam alguns adereços, que eram jogados para cima e recebidos novamente, com muita habilidade. Não, ela não era nenhuma esportista, muito menos bailarina. Era apenas alguém que se divertia, que aproveitava o desfile chinês para diminuir a ansiedade que carregava no peito. E como seu rosto era formoso e delicado.

Foi então que, por instantes, os olhos da moça cruzaram com os olhos do rapaz. Encantaram-se. Proibiram-se. Afastaram-se.

Ele era um mero alguém que passeava por aquele lugar, sem ao menos falar a língua local, e ela, uma donzela de família tradicional, possivelmente reservada para o filho de alguma outra família da região. Seria impossível uma aproximação.

E então, tudo passou. Ele ficou ali sentado, esperando o dia amanhecer. A festa perdera o brilho, e as lanternas sequer faziam a luz chegar até ele. Se existia luz naquelas lanternas, ele sequer percebia. Não fazia mais diferença. Também pouco adiantaria sonhar com algo impossível.

Mas a rua estava tão linda. Não poderia partir sem levar algo daquele lugar.

Aproximou-se de uma casa e reparou algumas flores esquisitas, muito semelhantes às lanternas que ornamentavam a rua. Colheu algumas e fez uma espécie de buquê, como se recobrisse a própria mão com aquelas flores. Ao se voltar para a rua, um susto acometeu seu peito. Era ela, e estava bem diante dele, olhando para seus olhos.

flor lanterna chinesa - by Google
―Me leva com você? ―ela perguntou, calmamente.

―É um sonho?

―Não sei! Mas se for, que tal sonhá-lo por inteiro?

―É impossível... ―ele retrucou, deixando algumas lágrimas aflorarem.

―Impossível é eu fingir que nada aconteceu quando te olhei nos olhos. E só será impossível algo existir entre nós se aceitarmos o que querem nos impor. Um sonho só é impossível de ser realizado se ele não for sonhado.

Pequenas flores, com formato de lanterna, hoje crescem abundantemente num certo jardim, bem longe de onde eles se conheceram. E o impossível é passar por lá, por aquela rua onde eles cruzaram os olhares, e não sentir a vibração de um olhar que, ao cruzar com outro, ultrapassou barreiras e limites.

Marcio Rutes

sábado, 13 de julho de 2013

SEREMOS SEMENTES ENTRE LENÇÓIS

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As certezas, não quero tê-las,
então, se perdê-las,
busco outras.
Talvez a boca,
essa me sirva,
de preferência a tua,
nua, desnuda de intenções.
Alimento ela com sensações,
noções desmedidas,
mas embriagadas de nossa querência.

Essência, essa palavra maldosa,
que nos escapa fogosa e atrevida,
dessa quero me banhar.
O sal, esse do teu suor,
irá me temperar,
me misturar aos teus líquidos,
e me desidratar em ciclos.
Entre laços e abraços,
um nó feito de pernas e compassos,
abertos entre meios lençóis,
atirar as asperezas para cima,
e rimá-las com as palavras mais descabidas.

Será neste diálogo,
entre gemidos sustenidos,
gritados ao pé do ouvido,
que escreveremos nosso ritual.
Um sol nascerá de nós,
e como entre tapetes voadores,
eriçados por corredores de verdes carretéis,
flutuaremos nossos sonhos de mortalidade.

Te buscarei em teu peito,
seio desnudo colado ao meu,
numa fração de tempo futuro,
para te germinar em mim.
Temperos que tanto nos faltaram,
hoje de tão desnecessários,
despencam pelas beiradas da cama.

Será amanhã, no entanto,
que acordados para o novo dia,
refaremos nossos corpos cansados.
E eles, refestelados entre cheiros e odores,
suores, sensações e amores,
deixaram até os deuses desnorteados.

(Marcio Rutes)



Seremos, 

faremos o ventre atropelar estrelas
e todo o resto dissipar por entre
as curvas desse olhar travesso,
desse jeito festeiro 
de me desarrumar 

[por dentro]

Por fora,
essa boca desnuda de todo o pudor,
de cor e suor,
desse verbo delirante,
aconchegante por entre os meios,
por entre os seios
esse ser teu centro,
ser teu dentro
e me (derr)amar a pele,
invertendo a direção de todo o meu suor.

Entre!

Nessa lasciva boca me provando o sal,
esse não querer o mal
por entre os dedos
que nos transmitem (e)terno,
esse belo e
enlouquecido tom.

Sussurros em falsetes
decorrentes,
recorrentes,
sementes
de todo verbo
mal desavisado:
não se desmisture de mim
as tuas águas todas
e dos meus leitos
seja a chave que meu peito esconde
e me inunde de ti,
daquele jeito teu
em mim.

E perto,
sorrir tão certo
quanto
descoberto (v)ir.

Descubra-me na nossa perdição!

Cubra-me!
nesse teu inverno incandescente,
dessa querência destilada
toda a nossa essência indecente
de me verter água de cheiro
no teu se derramar inteiro

[do começo ao fim].

(Interação de Samara Bassi)




Marcio Rutes

quarta-feira, 10 de julho de 2013

SERENATA PARA SASSÁ

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Enfim, tudo pronto. O violão estava afinado e a noite, por sorte, seria limpa e estrelada, com a mais bela lua seresteira. Bom, assim pensavam aqueles dois, pois diante dos problemas de visão que portavam, era difícil tanto afinar um instrumento musical quanto enxergar estrelas. Não eram portadores de cegueira total, mas as dificuldades para diferenciar cores e formas, numa distância relativamente curta, eram enormes. Os amigos ajudaram muito, e eles, sempre confiantes, partiram para a primeira serenata de suas vidas.

Armandinho, o irmão mais velho, estava apaixonado. Conhecera Silvana, a Sassá, na fundação de assistência que frequentavam, e ela, moça espevitada e também portadora de problemas de visão, logo se enveredou pelo moço romântico e batalhador. A cidade pequena era cheia de armadilhas em suas calçadas. Buracos e obstáculos atrapalhavam muito, o que obrigava os dois a apoiarem-se um no outro em quase metade do caminho para suas casas. Conversas bobas e sensações de bem-estar apareciam por quase todo o caminho, fazendo com que a fundação de assistência se tornasse uma mera desculpa para que eles pudessem se encontrar todos os dias. Enamoraram-se.

Hugo, o irmão de Armandinho, era moço estudado. Mais novo, ele nunca se conformou com as restrições que a vida impunha. Certa feita, aos 15 anos de idade, armou sua trouxa de roupas e partiu para a cidade grande, para morar com os tios e estudar. Voltou formado em Letras, coisa que poucos naquela pequena cidade sabiam para que servia, e também ostentando um visual estranho, de cabelo colorido e roupa extravagante. No entanto, o que ninguém compreendia era aquele aro metálico que ele usava no nariz, parecendo uma argola que se coloca em focinhos de bois para amansá-los.

Os amigos e familiares, ao descobrir a paixão de Armandinho, fizeram festa. Ele, muito querido por todos, estava em êxtase, e queria porque queria dar um presente para sua amada. Hugo contou que na cidade grande existia uma tal “tele-mensagem”, que nada mais era do que um veículo equipado com equipamentos potentes de som. O veículo parava diante da casa de alguém e um locutor recitava poesias ou, meramente, fazia alguma homenagem previamente escrita para a pessoa residente na casa.

Armandinho gostou da ideia, mas desiludiu, pois ali não existia tal coisa. Foi onde sua capacidade de improvisação entrou em ação. Juntou todos os amigos e, para cada um, deu uma tarefa. Alguns correram até a chácara de seu Ambrósio e pediram emprestado um Tobata, espécie de pequeno trator para espaços reduzidos ou manuseio de plantações de menor escala, enquanto outros deram jeito de arranjar uma carroça que se adaptasse ao mini-trator. Para Heitor, pai de Armandinho, ficou o encargo de procurar a estação da rádio local e conseguir algum tipo de equipamento de som para instalar na carroça. Por sorte, além do equipamento de som, ele conseguiu um eletricista, que montou o equipamento e o colocou para funcionar. A mãe, dona Jesuína, arranjou as roupas e fez o marketing e divulgação do evento, não deixando nenhuma amiga sem saber do ocorrido. Ela, em sua simplicidade, não reparou que a sagacidade de mãe zelosa tomava conta, e até para o padre Eustáquio ela acabou dando incumbência. Ele, na surdina, aproveitava os momentos em que estava com os fiéis no confessionário e espalhava a novidade.

O que ninguém notou é que o que era para ser uma simples serenata, acabou tomando ares de evento intermunicipal, pois até seu Leocádio, prefeito da cidade vizinha e irmão de padre Eustáquio, entrou na dança e resolveu ajudar, patrocinando o evento que, para ele, poderia render alguns votos em sua pretensão a atingir cargos maiores na política estadual. Então, preparou alguns cartazes, juntou seus correligionários e confirmou presença.

Tudo caminhava as mil maravilhas. Padre Eustáquio se ofereceu para ficar por perto na hora da cantoria. Era o único que conhecia alguma coisa de música, e por certo poderia ajudar, caso algo precisasse ser improvisado. E lá foram todos, com os dois irmãos vestidos a caráter. Terno branco e chapéu Panamá, também branco, e tudo patrocinado por seu Leocádio.

Na rua, a satisfação de dona Jesuína era imensa. Olhando ao redor, ela jurou ver mais gente do que nas festas da quermesse da Igreja. Se soubesse contar, poderia dizer que o grupo passava, tranquilamente, dos 100 integrantes. E lá foram todos eles, em passeata, até a casa de Silvana, a amada Sassá de Armandinho.

Padre Eustáquio também estava orgulhoso. Conseguia, não se sabe como, impor ordem a toda aquela gente. Até haviam pensado num grande alarde após a cantoria, com passos ensaiados de dança e tudo. Mas, existia um problema. Sassá era moradora nova, e não frequentava a igreja. Sequer seus pais ou familiares eram conhecidos. Onde era a casa dela?

―Olha, padre Eustáquio. Eu inté sei, mais num vô consigui guiá tudo esse povo inté lá! ―Armandinho comentou, se aprumando dentro da apertada e incômoda gravata. ―É du lado da casa nova que o prefeito construiu e que se mudou inda ontem. O sinhô sabe dadonde é?

―Aquelas duas casas iguais, lá perto da praça? Sei sim.

O padre confirmou e subiu na carroça. Com alguns berros, ordenou todos em marcha e, ao chegar bem próximo ao local, colocou sua estratégia em prática. Pediu a algumas beatas da igreja para ajudá-lo na organização do povo. Elas estavam incumbidas de observar os movimentos do padre e, na hora certa, aparecer de supetão e propiciar a maior algazarra. E até nisso seu Leocádio ajudou, dando a elas alguns uniformes, que, obviamente, carregavam seu slogan político e seu nome.

Com tudo pronto e silencioso, Armandinho deu a deixa para Hugo começar a tocar o violão.

―Como assim? Eu não sei tocar esse negócio. Ninguém me falou que eu deveria tocar violão.

Padre Eustáquio pressentiu que tudo poderia desmoronar, e correu em socorro. Em menos de 5 minutos, ele já tinha encontrado um violeiro e o colocado junto aos irmãos. Ninguém menos do que seu Leocádio.

E também não demorou para passarem a seu Leocádio a programação da serenata. Iriam começar com a música que Sassá mais gostava, e que era um clássico da música sertaneja: ABRA A PORTA, MARIQUINHA. Armandinho, diante de seu pouco talento, faria a voz masculina, deixando para Hugo a voz feminina. E começaram.

Armandinho - Abre a porta Mariquinha
Hugo - Eu não abro não
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão
Armandinho - Abre a porta Mariquinha
Hugo - Eu não abro não
Hugo - Você vem da pagodeira
Hugo - Vai curar sua canseira
Hugo - Bem longe do meu colchão

Nada. Um silêncio aterrador. Sequer um pio de coruja ou latido de cachorro se escutava. Armandinho, que mal enxergava, perguntou para seu Leocádio o que estava acontecendo, e ele apenas deu de ombros, mostrando que também não estava entendendo patavina de nada. Partiram, então, para a segunda parte da música, toda cantada por Armandinho.

Armandinho
Oh! Mariquinha abre a porta e não reclama
Mostra que você me ama que eu não quero discussão
Você queria que seu bem fosse bocó
Pra te levar no forró
E depois ficar na mão

Assim que o último verso foi cantado, uma das janelas do segundo andar se abriu lentamente. Alguém, todo de branco, caminhou até a sacada e, segurando uma espingarda de dois canos, disparou para cima.

―O qui é qui ocêis quérem aqui, seus bosta? I qui negócio é esse di chamá minha muié Mariquinha pra módi abri a porta?

Ninguém entendeu nada. Até que o padre se deu conta do que estava acontecendo. E teve certeza quando, ao olhar para a outra casa, viu uma moça na sacada.

―Meu Jesus! Essas duas casas são iguais, e esse tanço do Armandinho se enganou de casa. Essa aqui é a casa do prefeito.

Lá em cima, o homem bufava e recarregava a espingarda. Até que parou e olhou bem para os três homens que estavam lá embaixo.

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―Mais eu num querdito! Intão é ocê, Leocádio? Seu bosta. Pensa qui num alembro qui ocê foi apaxonado pela minha Mariquinha antes di eu casá cum ela? I qui história é essa di vim aqui, cantá dizêno pra ela abrí a porta i ti levá pro colchão dela? Ah! Eu mato ocê, peste.

Seu Leocádio se desesperou e levantou. Nisso, padre Eustáquio também saiu de onde estava e ergueu os braços, querendo parar aquele homem tomado pela raiva. As beatas, mais distantes, acharam que era o sinal para começar a algazarra e, rapidamente, atiçaram o povo, que saiu da surdina e foi todo para frente da casa onde os outros estavam. Nas mãos, todos carregavam cartazes e faixas com o nome de seu Leocádio, e para piorar, ainda entoavam versos da música que Armandinho havia escolhido para a homenagem.

O furdunço foi geral. Não demorou e os dois prefeitos estavam frente a frente, se acusando. Ao ver todo aquele povo usando camisetas e portando faixas e cartazes com o nome de seu Leocádio, o outro prefeito considerou uma afronta tanto pessoal quanto política, e chamou seus correligionários. Seu Leocádio, vendo que iria apanhar e não tinha para onde correr, telefonou para sua cidade e chamou seus seguranças. A guerra estava formada.

Armandinho, perdido naquele tumulto, se amparou em alguém, e para não cair, segurou firmemente na pessoa. Não esperava, no entanto, que fosse justamente dona Mariquinha. Bem perto deles, Sassá e seus pais assistiam a tudo, e mais atrás, o marido de dona Mariquinha e seu Leocádio também pararam para admirar o que estava acontecendo perto deles. O que todos viam, condenou Armandinho a pagar por algo que ele sequer sabia que estava acontecendo. No desespero de segurar em algo para não cair, ele se apoiou justamente no peito de dona Mariquinha, mais precisamente no seio esquerdo.

―Abestado! Mato ocê, seu peste! ―o marido de dona Mariquinha berrou, empunhando a espingarda.

O tumulto generalizou, e só não piorou porque o padre, armado com a espingarda de alguém, deu dois tiros para cima e fez todos sossegarem. Foi o tempo suficiente para tirarem dali o pobre do Armandinho. Porém, Hugo havia desaparecido, e por mais que procurassem, não conseguiam encontrar. Só foram ter notícias dele alguns meses depois.

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Passados alguns anos, a animosidade que se instalou entre as duas cidades, isso por conta do pé-de-guerra que os dois prefeitos declararam na época, parecia acalmar. Seu Leocádio é, agora, aliado político de seu antigo rival, ou seja, justamente do marido de dona Mariquinha. Ambos estão na capital e tramam lançar como candidato para deputado federal o pobre do Armandinho, que depois de tudo, ganhou espaço na rádio local e nos jornais da região. Ficou famoso.

O irmão de Armandinho, que sumira, foi descoberto tempos depois, em uma cidade do litoral. Virara poeta hippie e ganhava a vida cantando versos para os turistas e vendendo artesanato que sua esposa confeccionava. Quem é a esposa? Sassá.

Padre Eustáquio foi quem mais penou com o ocorrido. Largou a batina e ficou pelas ruas, mas não demorou para se reerguer. Hoje, além de ser um dos banqueiros do jogo de bicho da cidade, ainda mantém uma linha de importação de bebidas. Ou melhor, compra bebida falsificada no Paraguai e distribuiu para toda a região. Com os lucros, sustenta a campanha política de Armandinho. Além disso, acabou casando e tendo filhos, e justamente com dona Mariquinha, que largou o prefeito e abriu, na época ainda, um sex shop na cidade.

E como dizem, entre mortos e feridos, todos se salvaram e vivem em paz.

Marcio Rutes


sexta-feira, 5 de julho de 2013

ANDANÇAS (PORTA-RETRATO)

Crônicas de uma música
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Não existem apenas desertos de areia. Agora eu sei, pois perambulei por muitos deles, e garanto que alguns eram floridos como um jardim real. Garantiram que era pura miragem, e que aquilo que vi era a ânsia minha em me livrar da secura que me gastava. Afirmo que não. A secura estava em meus olhos e corpo, claro, mas aprendi a tocar o chão mansamente e senti-lo, conversar com ele, aceita-lo e aprender o que ele tem para me ensinar.

Andei por campos de uva onde o vinho não me bastou. Sequei tonéis inteiros buscando esquecer o que sequer sabia que existia, e mesmo na dor arroxeada dessa omissão consentida, meus olhos fabricavam um caminho a seguir.

Desbotei o céu, fazendo despencar cada estrela que existia em seu pingente. Para que precisaria de algo brilhando se a luz que me guiava vinha de uma pedra tão comum, mas que me fugia a cada instante? Também não quero diamantes, e desprezo a ganância que eles atraem. Sou pedra de rio que sonha em ser, qualquer dia, um quartzo. Sonho em ter brilho natural, e não em ser lapidado.

A brisa morna já teve sua graça. Em minhas andanças, ela mais bufava do que amainava minha pele. Pele! Faltava algo em mim. Um sopro próprio, que quando vinha dos pulmões, amansava qualquer temperatura ou, ainda mais, fazia pulsar a mais forte quentura. Era um sopro sim, mas para mim servia de furacão.

As fazes da lua sei de cor. Mas, para quê? Um quarto crescente que mais míngua do que se enche enquanto desbota na sua fase mais nova. Lua deveria ser espelho... não... lua deveria ser porta-retrato, e cada um deveria ter a sua. Quando quisesse, tiraria a sua lua do bolso e olharia para ela. Para ela. Para o retrato... dela.

Retratos. O único que carreguei durante a jornada estava amarelado. Roubaram-me tudo. Roupas, alimento, calçado, estima e coragem. Mas o retrato não. Ele estava guardado num bolso bem escondido. Num bolso chamado coração.

Aliás, perdão dona lua, mas você é um péssimo porta-retratos, pois fica aí em cima, mostrando para todos o que você carrega. Você não respeita a privacidade da saudade daquele que colocou a foto de sua amada em você? Daquele que confiou a ti a guarda das feições de uma última recordação? Fiz, então, do meu coração um porta-retratos. E mesmo com o retrato amarelado, é para ele que olho sempre que quero ver o rosto dela. Mas sempre que olhei para dentro de mim, vi um deserto enorme. Não tinha lua, nem tonéis de vinho ou pingentes de estrelas. Brisa? Só um ar seco e causticante. Só havia um deserto.

Para que, então, carregar um retrato nesse deserto? Para deixá-lo lá, amarelando ainda mais pelo sol infernal que castigava tudo? Não. Ele estava lá para servir de luz para minhas noites, e de esperança para matar minha sede. Também era minha bússola e o alimento da alma.

E como tudo nesse mundo não tem lógica, mesmo perdido cheguei a algum fim de caminho. Não existia vinho nesse lugar, mas a água que me deram matou minha sede. Não me serviram uvas para comer, mas pão. E como estava saboroso. Para meu corpo, a mão de alguém ajudou a elevar. A mão de alguém. E a mesma mão apoiou meu queixo, me fazendo olhar para cima. Vi varais sem fim, e em cada um deles, uma constelação de estrelas em pleno dia, onde sol e lua co-habitavam. Miragem? Pensei que sim. Até que olhei para os lados e vi areia, muita areia. Aos meus pés, um oásis.

Aquela mão. De quem era? Seria a mão de Deus, trazendo a mensagem de que tudo acabara?

Não. A mão era conhecida. Era a mão que eu tentei esquecer sem sequer ter conhecido. Era a mesma mão que, quando embebedado pelas mazelas do destino, me acolhia e recolhia. E foi esta mesma mão que lapidou em quartzo o retrato que estava em meu coração.

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Desertos existem sim. E nem todos são feitos de areia. Existem desertos dentro de nós mesmos, tão grandes que se não cuidarmos, jamais chegamos ao fim. Mas assim como existem desertos, também existem oásis em locais escondidos pelas miragens que nós mesmos criamos. Para encontrá-los, cabe acreditar na esperança que se tem.

Ela andou ao meu lado esse tempo todo, e eu pensando que era uma ilusão criada pela embriaguez de um vento que eu mesmo soprava. Cuidou de mim mesmo sem eu saber. No fim de tudo, miragem era o retrato, pois ele era uma idealização de algo que eu sempre busquei sem ao menos saber o que era. No entanto, jamais desisti de procurar. E encontrei.

Não pense que estou falando metaforicamente quando me refiro a “ela”. Mas saiba que “ela” contém muitos elementos além do corpo físico que carrega. Ela é de carne e osso sim, mas também é feita de felicidade, de sal e sol, de perfume e de magia, de arte e sonho.

É! Valeu a pena caminhar, por mais que tenha sido por desertos secos ou verdes. Valeu a pena.


Marcio Rutes
(Marcio JR)


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O texto acima é uma forma alusiva de descrever o que sinto e visualizo quando escuto as canções POR ONDE ANDEI e SEI, ambas interpretadas por Nando Reis.


Música: POR ONDE ANDEI (Nando Reis) - by YouTube


música: SEI (Nando Reis) - by YouTube


quarta-feira, 3 de julho de 2013

CASULO

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Sol. Sentia o calor aquentar-lhe rosto e corpo. Um renovar tomava-a como em outros tempos. Gostava do vento, da chuva e da sensação de poder se movimentar livremente. Seria a hora certa?

―É! Lá fora deve já deve ser primavera. E agora, o que eu faço? Está tudo tão úmido aqui dentro ainda, e nem sei se estou pronta para sair.

Revoadas daqueles que independem de casulo tomavam todo o espaço. E ela ainda lá, em seu casulo cor de pele. Sairia quando? Criaria coragem?

Admitir a necessidade de encasular fora um problema. Sair do casulo era outro, ainda maior. Não existia conforto naquele lugar apertado, mas em compensação, nada a molestava ou incomodava. Ninguém se aproximava. Ninguém aparecia sequer para pedir uma xícara de açúcar emprestada.

―Ninguém! Em todo esse tempo, ninguém lembrou que existo! Ninguém...

A primavera, com seus motivos para florescer, veio e foi, assim como o verão, que fustigou olhos e olhares. Corações também. Logo seria outono, época de encasular de novo, e ela estava lá, reticente e achando que não estava pronta para enfrentar seu mundo novamente.

―Mas, tudo bem. De lagarta para borboleta. É assim, não é? Amainar a fase rastejante, com suas dores e inconveniências, para alçar vôos delicados e que encantavam a todos.

As dores precisavam, realmente, de um lenitivo. Ela sofrera, por certo. Resistiu o quanto pode para iniciar aquela transformação, para se recolher e se preparar.

Então, veio a sensação de aprisionamento. Superou. Depois, lembrou de cada martírio pelo qual passou, e também superou. Agora, era o vazio. Sabia que melhorara, ao menos em sua aparência externa, mas ainda achava que não estava pronta.

E assim foi. Mais um verão naquele casulo.

Precisava melhorar. Superar cada dor que carregava, ou cada grão de desprezo que fora depositado em seu íntimo. Superaria. Sabia disso e iria até o fim. E somente Deus é que sabia o quão dolorido fora este último inverno.

Até que a primavera começou a dar seus ares da graça novamente. Ela sentiu, no interior de seu casulo, a aragem morna que tanto gostava.

­―É agora!

Num gesto repentino, rompeu a casca e saiu para o mundo. E como ele estava belo, movimentado, com um sol quentinho. E as pessoas, todas ali caminhando e se trombando.

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Ela queria, muito mais do que olhar aquilo tudo, saber o que seus tantos conhecidos falariam dela, e principalmente como a receberiam após todo esse tempo de recolhimento. Estava diferente, senhora de si e, o que era melhor, possivelmente seu aspecto também mudara muito. Será que agradaria a eles depois de todo esse sofrimento pelo qual passou?

Já na primeira esquina, encontrou alguns amigos. Decepção. Eles sequer repararam sua presença. Mais adiante, outras pessoas que ela conhecia, mas eles também não ligaram muito para a presença dela. E com outro grupo foi a mesma coisa. O dia passou, e ninguém a notava.

­―O que está acontecendo? Sofri tanto para nada? Me recolhi porque a maioria me repudiava, e depois desse tempo todo, ficou ainda pior. Por que me odeiam tanto?

Alguém que passava reparou naquela mulher chorando, e parou para perguntar se poderia ajudar. Para surpresa, encontrou ali alguém que não via a muito tempo.

­
―É você, Maria?

―João? Sim, sou eu. Que bom. Ao menos alguém me reconheceu. Por que todos estão me ignorando, João? Todos me odeiam, só pode ser isso!

―Reconheci você por mero acaso, Maria. Faz mais de vinte anos que não te encontrava. Você sumiu. Envelheceu. Como quer que alguém te reconheça?


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Por vezes, encasular-se (recolher-se) é necessário. Talvez não para uma evolução visual, mas sim para curar dores que carregamos e que somente o tempo irá dar jeito. 
O rompimento precoce do casulo pode deixar a cura pela metade, mas, exceder o tempo pode trazer consequências desastrosas, ainda piores do que aquelas propiciadas por antecipar a saída. Para tudo existe um tempo certo.
Além do que, todo sofrimento tem um limite. Você pode tentar mudar para agradar a alguém sim. Mas, essa mudança tem que agradar a você também, ou tudo terá sido em vão.



Marcio Rutes
(Marcio Jr)