domingo, 14 de abril de 2013

UM CHEIRO DE SAUDADE

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O saracoteio mascado e marcado no gingado daquele gado sinuelo apaixonava a menina. Lá da cerca ela olhava distante, se deixando flutuar sem sair do lugar. Ficava horas por ali, reparando aquele ir e vir dos bois no pasto. Cheiro de mato molhado era seu perfume preferido.

Ela, ainda meninota, era dona de uma pirraça gostosa, de um sacudir de ombros que era de atormentar o pobre do pai.

―Essa “muleca” vai me dar trabalho! ­­―resmungava o pai sempre que via a menina sumir pelo prado afora.

E assim ela cresceu, cheia de energia e vontade de conhecer gente nova. Sempre que podia, corria para a cidadezinha e ficava por lá, lendo as revistas usadas que o velho turco vendia no armazém. Era um deslumbramento único que florescia nos olhos quando ela parava em alguma foto da cidade grande. Coração batia forte. Na manhã seguinte, lá estava ela naquela cerca, conversando mesmo que distante com os sinuelos. Eles não entendiam nada, por certo, mas ela falava mesmo assim. Sonhava acordada enquanto falava. Quem sabe até vivesse aquele sonho ali mesmo, fazendo voar pelos campos cada pedacinho daquelas fotos da revista que ela trazia na memória.

Ela nunca teve medo de sonhar, muito menos de esconder ou de se render ao destino. Seu mundo, aquele que existia dentro dela, era maior do que aquele prado habitado pelo gado e pelos pássaros brancos. Ela queria, e iria, conhecer o que existia além das planícies. Queria, ao menos uma vez na vida, fazer parte de uma daquelas fotografias que ela sempre via lá no armazém do velho turco.

O tempo passou e ela cresceu. Já não cabia mais naquele lugar.

―Tá. Eu te mando pra cidade, pra você estudar. ―o pai concordava, mesmo a contragosto. ―Mas eu sei, essa menina arteira vai correr o mundo, e a saudade da poeira vermelha vai trazer ela de volta.

Os dias esticaram para ela. A ansiedade tomava seus instantes e sequer os sinuelos ela voltou a visitar. Comprou cada revista velha que o turco vendia, e praticamente decorou as palavras. Até que chegou o dia da partida. Mas mal sabia ela que o apito do trem seria o som que a acompanharia por quase 4 anos de seus futuros sonhos.

Demorou um pouco, mas lá estava ela, cercada pelos altos edifícios e por aquele corre-corre das pessoas apressadas. De nada adiantava ela falar “bom dia”, pois a única coisa que ela recebia em troca era um olhar desconfiado. Durante a noite não tinha pio de coruja, e no lugar das estrelas o que rebatia em sua janela era a luz daquela lâmpada irritante que ficava no poste da rua. Até o cheiro da cidade era outro. Um cheiro enjoado, de óleo queimado e fumaça. Como aquelas pessoas conseguiam passar o tempo todo com aquele cheiro no nariz?

O olhar arteiro da menina foi se perdendo pelo gris daquelas paredes tristes que rodeavam sua face. O balançar dos ombros agora era apenas um jeito de desviar desse ou daquele que quase trombava com ela naquela pressa urbana. E o que um dia fora um sonho recheado de magia, hoje é somente uma semente de ilusão que fez brotar uma saudade sem igual.

No quarto em que ela dormia, existia um cantinho onde ela cultivava um pedaço de seu passado. Lá, nesse canto, estavam as revistas que ela comprara do velho turco, aquelas mesmas que estampavam as fotos que despertaram tantos sonhos. Uma melancolia sem igual brotava dela a cada virar de páginas. O cheiro da revista velha fazia ela passear no tempo, e voltar para aquela cerca onde tanto tempo passou mirando o requebrar dos sinuelos. Hoje ela lembra que sequer foi lá para se despedir do gado e do mato molhado.

Em certa feita, o velho pai foi para a cidade. Queria ver a filha, e também tudo aquilo que ela contava nas cartas que enviava. Parecia tudo tão bonito no papel, descrito por ela quase em poesia, que ele chegava a pensar que a menina jamais voltaria para suas raízes. E assim ele se preparou para ouvi-la dizer que por lá ficaria.

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O abraço foi inesperado, terno e demorado. Ela, assim que enxergou o pai pela frente, pulou nos braços dele e respirou aquele cheiro que somente ele tinha. Era cheiro de infância, de vida, de mato, de gado sinuelo. Era cheiro de sonho bom, do único sonho que a tomava em cada noite naqueles tempos de triste realidade.

O pai não se conformou ao vê-la magra e pálida. O que haviam feito com sua menina arteira? Onde estava tudo aquilo que ela escrevia nas cartas? Todo aquele glamour da cidade grande? Seria tua mentira? O que ele via, de verdade, era uma tristeza sem tamanho tomando os olhos de sua filha.

Com um único toque das mãos no rosto do pai, ela fez um pedido velado, e que sequer precisou ser entendido para ser acatado. Voltaram no primeiro trem da manhã seguinte. E no cumprimento de um presságio, as boas-vindas foram dadas justamente por uma nuvem de poeira vermelha.

Os ombros da menina retomaram aos poucos aquele requebrar. O pai pensa que ela faz isso de tanto olhar os sinuelos, mas não liga mais para tal coisa. Ela voltou para a cidade logo depois disso. Precisava terminar os estudos, mas retornou rapidinho para a cidade pequena. Virou professora, e tem uma pequena escola lá ao lado do prado, pertinho dos sinuelos.

Por vezes, ela repara alguma meninota olhando revistas antigas e suspirando sobre aquelas fotos. Mas ela não fala nada. Sabe que em alguns momentos precisamos quase perder para reparar o valor que pequenas coisas podem ter.

Ficam lá, ela e as crianças, entretidos na lousa e nos cadernos. Até que o apito do trem avisa que é quase hora do almoço. A correria é tanta, que ela mal consegue se despedir de todas as crianças. E o trem se vai, levando gente embora para correr atrás de sonhos novos ou já um tanto batidos.

Uma coisa, no entanto, ela aprendeu com tudo isso. Sonhos velhos sempre fazem brotar novas saudades.



música AÇAÍ (Djavan) - by YouTube

Marcio JR
(Marcio Rutes)


domingo, 7 de abril de 2013

UMA VIAGEM DO TEMPO EM MIM

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E assim, o tempo fez um viagem em mim. Ele correu montanhas de gelo em meu peito, atravessou rios de correnteza turbulenta, cruzou abismos profundos que cravaram meu coração em outras épocas. Num turbilhão imaterial, me acompanhou pelo espaço, me conduziu por mundos em que vivi mas que, por desleixo ou por ignorância, deixei pra trás.

O tempo voltou em mim, foi me ver nascer. Chorou comigo algumas vezes, brincou de bola, de peão, de pipa... cresceu comigo. Amargurou em dados momentos, sorriu em outros.

Algo pesou nos ombros, e sem entender, arqueei os braços como se tentasse me livrar de algo invisível. Era só o tempo, pasmado pelas ignorâncias que eu insistia em cometer. E o tempo viveu em mim o suficiente para me conhecer novamente. Pois é, o tempo não me reconhecia mais, mas ele não era o culpado. Quem sabe sequer eu me reconhecia em algumas atitudes.

A viagem continuou, e o tempo, amiúde, tocou sua sinfonia. Eu escutava, tentava decifrar, mas não tinha idéia de onde vinha aquele som tão estranho e, ao mesmo tempo, tão íntimo. Aos poucos, fui me envolvendo e lembrando. Acabei contagiado por uma sensação esquisita, de pura nostalgia, de pura melancolia. Mas aquilo era bom, fazia bem ao espírito.

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Ao fim de uma madrugada de pouco sono, o tempo se foi. Não, meu tempo não havia acabado, mas sim ele terminou sua viagem pelo meu eu atemporal. Estranhamente, o tempo dobrou-se em dúvidas. Não me entendeu. Ou não soube me ler.

Porém, eu e o tempo chegamos num acordo. Ele pode correr o quanto for, pode me envelhecer, pode até me fazer morrer, mas ele teve que aceitar minha condição anacrônica. Independo de tempo e espaço para me refazer.

Minutos foram necessários para reconstituir o que se perdeu por meses. Isso, o tempo jamais entenderá. Azar dele.


Marcio JR
(Marcio Rutes)